Em 3 de dezembro de 2015 por Rafael Fava Belúzio
No começo de outubro, na Escola Municipal Fervedouro, aconteceu o lançamento de Simplória, a verdadeira história, terceiro livro de Aparecida Gomes Oliveira. A obra, em edição bilíngue, contou com a ilustração do carangolense Thiago Assis e a versão, e inglês, elaborada por Paulo Risso.
O evento de lançamento esteve bastante frequentado. Cheguei a contar cerca de duzentas pessoas. Muitas delas eram carangolenses. Alunos e professores do Curso de Letras, da Universidade do Estado de Minas Gerais, bem como amigos do ilustrador contribuíram nesse fluxo entre as duas cidades. A própria autora da produção é aluna da UEMG/Campus Carangola – e relançou, na instituição, a obra, durante o recente Simpósio de Pesquisa e Extensão. Assim, seria discutível em que medida o livro não poderia ser ligado à tradição da literatura carangolense. Em obra anterior – Fê, prazer em conhecer –, Aparecida Gomes Oliveira, vale ainda lembrar, havia colocado a Princesinha da Zona da Mata como a personagem Carola, criando uma representação da cidade-mãe de Fervedouro.
Dados editoriais também ajudam a tornar um tanto indecidível esse pertencimento entre Fervedouro e Carangola. Pois a obra, sendo de uma autora daquela cidade, foi impressa na Gráfica São José, desta. Em termos editoriais, contudo, questões de projeto gráfico não foram muito bem trabalhadas. A qualidade da impressão – por vezes com certos borrões e em outros momentos muito clara, pouco visível, comprometendo as ilustrações – não é a ideal. Sem falar no posicionamento das imagens: em várias ocasiões elas estão no centro do livro, no local em que os grampos atravessam as folhas. Assim, não raro o leitor fica impedido de observar devidamente a ilustração. A insatisfatória utilização dos espaços, além disso, fica evidente devido à presença de folhas em branco, justamente em nobres páginas pares, quando os capítulos terminam em páginas ímpares. Cabe ainda destacar a diagramação do texto, pois a edição é bilíngue ocupou espaço mais nobre do que a versão em língua portuguesa. Nesse sentido, é no mínimo curioso notar que o texto na língua estrangeira se encontra quase sempre do lado direito da folha. Dessa forma, nas páginas pares o maior destaque caiba justamente para a língua estrangeira.
Devido a problemas como os listados no parágrafo anterior, é preciso constatar, infelizmente, o fato de na cidade haver gráfica, mas não editora. Há empresas que realizam impressões, mas falta trato efetivamente editorial. Esse não é um problema exclusivo da Gráfica São José. Regra geral, os livros editados em Carangola não trazem sequer ISBN.
Isso explica também um dos pontos que mais salta aos olhos no livro: a edição bilíngue. No Brasil, é costume haver projetos editoriais assim para obras clássicas da literatura universal, com traduções de zelo extremo. Por isso inquieta olhar uma obra do interior da Zona da Mata apresentando tal peculiaridade. Haverá leitor? A qual público se destina a versão em língua estrangeira? A autora, em conversa, chegou a dizer do desejo de fazer a obra encontrar leitores além da microrregião, ou mesmo em latitudes mais distantes. Mas entre as pessoas do lançamento bastante cheio, talvez apenas aquelas em certa medida vinculadas ao curso de Letras poderiam ler a versão em inglês. Entre as versões port/ing, aliás, é possível notar, aqui e ali, alguma diferença. Claro que traduções sempre permitirão questões dessa ordem. Porém chamo a atenção para alguns casos, por exemplo, de vírgulas. Em determinados trechos, na versão inglesa, há vírgula separando o vocativo, sem a correta correspondência na língua original.
Além da língua estrangeira, presença que lança a pergunta sobre o público leitor, o número de páginas e a narrativa também o fazem. A obra conta com 140 páginas em linguagem pouco acessível para crianças muito pequenas. E conta a saga de uma ovelha chamada Simplória. Essa personagem passa da condição de ovelha sofredora para uma situação bem melhor em sua vida. Ela deixa para trás personagens que a atrapalhavam, como a dupla Sang e Suga, encontra sujeitos que a ajudam, como Neemias e Graça, até chegar às metamorfoses do happy end. A narrativa, portanto, parece longa e relativamente densa demais para uma criança. O livro talvez poderia ser classificado como uma novela – grande demais para um conto infantil, pequena demais para um romance adulto.
Nesse ínterim, a construção dos nomes de personagens como Sang e Suga, como se nota, demarca, a priori, a característica principal de cada um deles. Há pouca profundidade psicológica, em geral. Talvez Simplória, contraditoriamente, seja a menos simples. Ela em determinados momentos visita algo como uma veterinária-psicóloga de ovelhas e escreve algumas linhas expressando suas angústias, o que matiza um pouco mais as suas características menos ou mais planas. De todo modo, os nomes, regra geral, servem como metáforas bastante diretas, como “O aprisco Methodus”, lembrando a Igreja Metodista, frequentada pela autora. Em certo trecho, ao apresntar o cordeiro Brutus, a narradora chega a dizer: “Como seu próprio nome já diz, ele fazia jus ao nome, nos tratava com certa brutalidade”.
Também são recorrentes os nomes de personagens bíblicas, especialmente quando Simplória passa por sete fontes em seu caminho de restauração. Lá ela encontra Neemias, Isaías, Paulo, entre outros. Assim, a influência cristã, sobretudo do texto bíblico, é mais marcante no livro. Mas também aparece alguma influência de escritores ligados à Teologia da Libertação, como Rubem Alves e Leonardo Boff, e de cultura pop, devido à referência ao seriado Todo mundo odeia o Chris. Nessa ligação com a TdL, destaco o fato da ovelha Simplória ter podido assumir, em determinados momentos do livro, uma posição que seria como a de uma pastora de igreja. Algo, no mínimo, incomum para personagens do sexo feminino, mas bastante próximo da Igreja Metodista.
O que não é incomum no livro é a sua motivação de escrita. No começo da obra, a narradora afirma que “Escrever para mim é terapia. É tirar de dentro de mim, colocar pra fora e assim me libertar de quaisquer sentimentos que teimam em roubar minha paz”. Assim, com essa escrita como forma de libertação, a narradora e, talvez, a própria autora apresenta Simplória, a verdadeira história. Portanto, fico pensando que talvez o livro precisasse de mais metamorfoses. Não digo as que sofre a personagem principal da narrativa, mas metamorfose de linguagem: deixar para trás essa dimensão apenas subjetiva, essa espécie de expurgo sentimental, e à própria obra ser dada certa autonomia linguística. O texto poderia ser mais trabalhado como ficção e menos enquanto confissão. Talvez chegar, a partir de um nada, a ser um todo coerente em si, independente da vida do autor, ainda que ele vá fingir que é dor ficcional a dor confessional que deveras sente.