Em 16 de setembro de 2014 por Rafael Fava Belúzio
A primeira vez que vi o livro Saudade do futuro, de Emílio Sérgio Belletti Rodrigues, foi quando eu ainda era adolescente. Estava em uma estante de uma loja, em Carangola. A capa me chamou muito atenção, a diversidade de tons de azul e o título. A obra havia sido publicada em 2001. Mas a li somente esses dias. Há alguns meses a ganhei de Lauricy Belletti Rodrigues, mãe do autor e organizadora da publicação. Agora, junto ao bom título melancólico e à boa capa azulada, estão em mim alguns bons poemas melancólicos e azulados e um lindo conto.
Esses textos foram escritos entre o meio da década de setenta e o final dos anos noventa, quando, tragicamente, o autor, nascido no começo dos anos sessenta, faleceu. Assim, de Emílio Rodrigues foi tirado o direito à vida e o direito de dar vida à própria obra. Coube à sua mãe a tarefa de selecionar, editar, organizar e publicar. Nessa empreitada, Lauricy Belleti escolheu muitos poemas ligados a temas como a família e a morte. Outros escritos ficaram de fora, o que, talvez, justificaria, hoje, haver uma segunda edição de Saudade do futuro. No prefácio materno e crítico, Lauricy Belletti reconhece, contudo: os textos publicados estavam como work in progress. Chega a contar que disse ao filho sobre “a precisão de trabalhar mais, de burilar…”.
Essa percepção de inacabamento é notável ao se ler a obra. Oscilam, de um lado, momentos de uma autoconsciência muito interessante, de outro, momentos em que ficamos sem saber a fronteira entre o inacabamento desejado e o inacabamento inevitável. Tal dúvida também se deve, em grande medida, ao que há de Poesia Marginal nas páginas de Saudade do futuro:
Pelo menos uma vez
admita que nada sabe
que nada sobe
que tudo fode
que tudo pode
que é chato
O termo “fode”, acima notado, aproxima o autor do vocabulário marginal. Assim como a elaboração de versos rápidos, rimas feitas com palavras de mesmas classes gramaticais, paronomásias. Mas o que há de Poesia Marginal em Emílio Rodrigues é menos ágil do que podemos ver em Cacaso ou Chacal. Em alguns momentos, chega a lembrar os diários íntimos de Ana Cristina César, como no poema “Insônia”.
Além de se aproximar de elementos marginais, Saudade do futuro se aproxima da MPB e de outras referências musicais. Não é gratuito o aparecimento de dois discos de Caetano Veloso entre as fotos que recheiam da obra de Emílio Rodrigues, sendo ainda oportuno lembrar o que Lauricy Belletti me contou em uma conversa: seu filho gostava muito de música em casa, foi a shows do próprio Caetano Veloso, ouvia Jim Morrison, Beatles, Rolling Stones, Nina Simone. Ao lermos os versos do poeta, vemos alguns musicáveis:
Não só o sol ilumina
Mas também os olhos dessa menina
O sol não só ilumina
Tem também o calor dessa menina
Marginal, letrista popular e poeta de verve um pouco filosófica, como nesse poema um tanto socrático e, relativamente, mais próximo da poesia brasileira dos anos 80 ou 90, de um Antonio Cicero, p. ex.:
Não sabemos até saber
que o quê sabemos não é
E nunca será além
Do já sabido saber
Que sempre soubemos.
Elementos da poesia concreta são outros que compõem a poética de Emílio Rodrigues. Os poemas costumam dançar na página. Utilizam, em alguns momentos, oscilações entre maiúsculas e minúsculas, são capazes de lembrar influências concretistas e/ou futuristas, bem como textos publicitários, ainda mais se recordamos que o autor era graduado em Comunicação Social/Publicidade e Propaganda:
só os olhos
podem te ver
assim exatamente
do jeito que
FOTOGRAFICAMENTE
te vejo
Embora haja traços marginais, de música popular, da poesia dos anos 80 e do concretismo, o autor recusou algumas dessas proximidades em um poema:
não sou concretista
nem neo
nem pós
nem pró
tampouco sou modernista
ou conformista
ou niilista
e nem mesmo machista
humanista
nem até futurista ou saudosista
Nos momentos em que demonstra autoconsciência mais elaborada, o eu-lírico procura desenvolver uma dicção modernista, fazendo lembrar a poética humilde e lírica de Manuel Bandeira
Eu bem que queria ser poeta
Um poeta bem menor, pequenininho
Mas poeta!
Talvez poetinhazinho, quem sabe?
É sim poeta. E em Carangola não deve ser visto como poetinhazinho. Tudo bem que o autor não pertence ao cânone nacional, apesar de demonstrar certa consciência de seu lugar em relação à tradição. No entanto, em Carangola, Saudade do futuro deve ser visto como um livro grande. Importante. Diz muito sobre nossa melancolia.
A prosa de Emílio Rodrigues, o pequeno conto sem título que poderia chamar “minha casa dos meus pais”, é um dos escritos mais carangolenses já lidos por mim. Aqui estão características como a dialética entre morar fora e morar em Carangola, a fala mineira da Zona da Mata (uma dicção percebida com muita sensibilidade pelo autor, com uma frase alongada, oralizada e polifônica), a mistura do rural e do urbano, as relações familiares.
Adélia Prado, por ocasião do falecimento de Emílio Rodrigues, escreveu a Lauricy Belletti: “Fale o Senhor por mim ao seu coração”. A poesia, e especialmente a prosa carangolense de Emílio Rodrigues, por sua vez, fala à sensibilidade da cidade. Por isso sinto saudade do futuro escritor que não conheci no passado, esse que talvez hoje escreva “com canetas/ sem tinta/ em folhas que imagino”.
lauricy belletti
20 de setembro de 2014
Rafael, nem sei o que dizer…. Sua resenha-crônica tão sensível e delicada me comove, emociona, me dá
uma alegria triste…(não uma alegria alegre como diria Emilio…) . Obrigada. Sei que essa palavra é pouco para
dizer desse sentimento. O dicionário é pequeno pra conter palavras que digam o indizível. “Muita coisa que
existe falta nome”, escreveu G.R. . Falta nome. Falta. Mas quem tem sensibilidade, não precisa de palavras.
Obrigada por sentir “saudade do futuro escritor” que nem conheceu…. Imagine quem o conheceu…. O nosso
futuro ficou preso ao passado e fomos condenados à pena perpétua. Seu texto revolveu lembranças alegres
e dolorosas… Mas “as amargas,não”…. Obrigada de coração. Valeu, Rafael.