Em 16 de julho de 2015 por Rafael Fava Belúzio
aoIlustração: Paulo Bevilacqua
Se isso fosse uma resenha, daquelas que ainda acreditam na imparcialidade do resenhista, eu deveria fingir que não imprimo minha opinião. Mas acontece que em Luísa e Arthur: aventuras para dizer adeus!, lançado, em 2013, por Mônica Pimentel, acabo aparecendo em dois momentos. No primeiro, como revisor da obra, posto que sempre me causa algum desconforto. Ao menos, como estou ao lado da professora Maria da Penha Ferreira de Assis, o problema é amenizado. No segundo momento, apareço ao final do livro, quando Mônica, gentilmente, agradece minha leitura dos primeiros originais. Trabalho sempre prazeroso e desafiador, pois ao mesmo tempo em que ocasiona o encontro de delícias feitas com trigo, é preciso indicar o que ainda resta de joio. Mais de dois anos após essa leitura, acredito que seja interessante escrever algumas linhas a respeito do livro de Mônica Pimentel. Sem achar que nisso de fazer resenha não haja alguma coisa de crônica bastante subjetiva, gostaria de refletir um pouco mais sobre essa obra.
Ela foi lançada no salão principal da Universidade do Estado de Minas Gerais, campus Carangola, com um total de 140 exemplares. A impressão foi realizada pela Minasgraf Editora, a qual, junto com a Gráfica São José, divide o ínfimo mercado editorial carangolense. Entretanto, essa pequenez é expressa, infelizmente, não apenas no fato de haver raríssimas publicações na cidade. No geral, falta, por parte de ambas as gráficas, um trabalho editorial mais consistente. O livro de Mônica Pimentel consegue dimensionar isso. Não há referência a dados de composição material na obra. O leitor fica sem saber, nominalmente, até mesmo o tipo de papel que passa por seus dedos. Isso porque pedir que seja feita uma ficha catalográfica parece algo de outro mundo, ou, ao menos, de outra cidade. Assim, a preocupação material visível em Mônica Pimentel, bem como em Camila Monteiro de Lima, ilustradora da obra, não encontra ressonância na editora. A escolha da diagramação ocorrer em um A5 e a coloração acinzentada do papel reciclado utilizado no miolo são elementos interessantíssimos para se pensar esse livro que se quer pequeno e modesto.
Literatura menor, mas singela, lírica. Preocupada em partilhar sensibilidade, ainda que longe demais das capitais. A narrativa, na verdade, procura universalizar a história, para ser lida em Carangola ou em qualquer lugar. Não há delimitações de tempo e espaço muito claras. Aparecem, por exemplo, meios de transporte como carro, bicicleta e caminhão, elementos que dimensionam um pouco temporalmente. Quanto ao espaço, há um trecho afirmando haver muitos olhares vigiando as vidas dos personagens, algo muito condizente com cidades do interior, mas que também caberia em condomínios de cidade maiores. Como já havia acontecido com Zhoe e o pássaro, o livro anterior da autora, as aventuras para dizer adeus efetuam uma homogeneização, evitando especificidades espaço-temporais, embora em Luísa e Arthur a homogeneização caminhe menos para o que em outro momento chamei de insosso.
A obra narra o modo como os amigos Luísa e Arthur vão enfrentar um problema: a mudança de um deles. Para tentar amenizar a angústia da ausência, planejam uma noite de aventuras, de maneira a intensificar os últimos instantes da presença. Essa narrativa se passa em, aproximadamente, sessenta páginas. Poderia ser tratada como um conto infantil, apesar da leitura de um adulto conseguir perceber também, e outros, elementos importantes. Nisso o livro do mesmo modo segue a perspectiva de Zhoe e o pássaro. Assim como a tradição literária da qual se aproximam as duas obras. Em Luísa e Arthur, bastaria lembrar as influências talvez mais fortes: Saint-Exupéry, mencionado, e Adriana Falcão, citada ao final do livro e visível nas muitas explicações existentes ao longo da obra, como ocorre em Mania de explicação. Mas acontece que Luísa e Arthur foi escrito por Mônica Pimentel enquanto ela fazia a graduação em Letras, na UEMG, e esse novo impulso literário da autora fica sensível, por exemplo, na relativa diversificação de referências intertextuais, em comparação com os livros anteriores. Ainda estando presente influências como o Clube da Esquina e a literatura cristã, manifestas desde a primeira obra da autora, agora ocorrem alusões mais plurais. Por exemplo, se a primeira epígrafe foi retirada de uma música de Milton Nascimento e Fernando Brant, a segunda é de Pablo Neruda.
A construção dos narradores de Mônica Pimentel, contudo, não seguem essa tendência de diversificação. “Embalando Coralina” – conto de Minas, eu te amo –, Zhoe e o pássaro e Luísa e Arthur apresentam, todos eles, discurso direto e narrador onisciente. Nesse sentido, se me permitisse o impropério de comparar essas obras com estilos de narradores da literatura, por assim dizer, universal e adulta, estariam próximas do realismo do final do século XIX, como aparece em Madame Bovary. Não lembram estilos como a primeira pessoa de Em busca do tempo perdido, a fragmentação de Cem anos de solidão, tampouco as ficções arquivísticas do narrador de O museu da inocência. A escolha de Mônica Pimentel, embora pouco maleável no correr dos anos, revela uma dicção ágil, de leitura sem grande dificuldade, talvez adequada justamente ao público infantil.
No entanto, o que parece pouco infantil são as falas das crianças, as personagens que nomeiam o livro. Algumas frases soam profundas demais para meninos de tão pouca idade, gramaticalmente muito adultas, como se vê nesse trecho enunciado por Arthur: “Não me esqueço, Luísa, porque meu problema de esquecimento não existe quando vejo a cor de céu dos seus olhos e quando se trata de estar com você”. A colocação pronominal está muito ajustada, a diversificação dos verbos, a imagem da “cor de céu dos seus olhos”, tudo isso parece muito piegas e refletido, demasiadamente maduro. Em alguns momentos, a dicção do narrador e as falas das personagens infantis parecem muito afinadas, de maneira que a distinção entre os caracteres não seja intensa.
Essa afinação está muito ligada ao lirismo. Alguns trechos, se colocados em versos, pareceriam mesmo poemas independentes, como esse trecho dito por Luísa, ao qual me permito acrescentar as barras: “a saudade é assim,/ um círculo que existe/ fora da aula de geometria,/ um círculo que cresce e vai crescendo,/ crescendo tanto que engole todas as brincadeiras”. Esse lirismo de Mônica Pimentel seria, fico pensando, interessante de se ver no palco. O livro daria uma bela peça teatral infantil, com atores adultos. Os cenários criados ao longo da narrativa não são muito diversificados, e plenamente encenáveis. Sem falar na presença constante do diálogo em toda a obra.
Outro ponto constante, mas em todas as produções da escritora carangolense, é a presença de temas como a saudade, a saída, a mudança, e, especialmente, a morte. “Embalando Coralina” falava disso com muita sensibilidade, lembrando Cora Coralina. Zhoe e o pássaro também se volta para o tema, mas reforçando uma perspectiva cristã. Mesmo Um último olhar, livro mais religioso do que literário, procurava encarar a possibilidade de observar algo em um momento derradeiro. Nesse conjunto está Luísa e Arthur. Agora o leitor pode encontrar a mudança da garota para o condomínio chamado CEO e a imagem da estrela-saudade.
Sob esse prisma, os quatro primeiros livros de Mônica Pimentel possuem bastante coerência, e talvez caminhem para a elaboração de uma poética. Sobretudo os três textos literários – “Embalando”, Zhoe (considerando aqui a primeira edição dele) e Luísa e Arthur – são muito próximos. Formariam um belo livro de contos, poderiam ser o Sagarana de Mônica Pimentel, feitas, é claro, as devidas proporções. Acredito que lidos em conjunto os contos se iluminam e ajudam a perceber o que de melhor escreveu a autora. Há confluência de temas e imagens, linguagem e lirismo. Em todos eles aparecem adultos, mas, especialmente, crianças; ausências; narradores oniscientes; frases rápidas e poéticas; mineiridades, em intensidades diferentes; melancolias; preocupações com as ilustrações; singelas materialidades dos objetos livros; publicações locais. A rede de influências por trás desses textos é também bastante coerente. Dessa maneira, as três obras variam sobre problemas mais ou menos próximos uns dos outros, mas sem cair em reprodução absoluta.
Como se vê, há muito por dizer sobre os livros de Mônica Pimentel. Mas ainda faltam trabalhos acadêmicos sobre eles. A escritora também deverá continuar publicando suas obras e espero seguir acompanhando essa trajetória, não só como revisor e analista de originais, mas como crítico, cronista, ou ao menos leitor. Por que eu não devia dizer, mas esse gesto político de alimentar Carangola com literatura… mas essa escrita com melancolia… botam a gente comovido como leitor.