Em 2 de fevereiro de 2015 por Rafael Fava Belúzio
Oi, sou Fê! Prazer em conhecer, escrito por Aparecida Gomes Oliveira e ilustrado por Thiago Motta, é, possivelmente, o livro de maior tiragem na região. A obra que mescla literatura e história, com intensas influências de política e favor, didatismo e religiosidade, apresenta uma caracterização muito particular da cidade de Carangola.
O texto, lançando em 2011, conta com pouco mais de 50 páginas e pode ser tratado como um conto infantil. Há boas doses de docere cum delectare. Saltam aos olhos, entretanto, mais o interesse político-educacional do que o deleite. Narra a história de Fê, o apelido de Fervedouro, cidade personificada por um garoto-mapa – e nessa personificação está a principal contribuição do ilustrador. Conta desde o nascimento da cidade, em 1953, passando por sua conturbada emancipação, em 1992, e chegando ao período dos cinco primeiro prefeitos fervedourenses. Nesse percurso, Fê interage com sua mãe, Carola (Carangola), e com alguns amigos: Chico (São Francisco do Glória), Mira (Miradouro), Di (Divino), Pedrita (Pedra Bonita), Ponga (Araponga).
Contudo, em muitos momentos, o traço narrativo de Oi, sou Fê! perde espaço. O acordo ficcional travado com o leitor vai para o segundo plano e se sobrepõem, por exemplo, listas de realizações de prefeitos. Há mais de cinco páginas enumerando automóveis adquiridos e ruas pavimentadas. Além disso, o tom político do livro desenvolve pouco o senso crítico da criança, provável público-alvo. Curiosamente, porém, estabelece uma visão crítica, por exemplo, na elaboração dos apelidos dos ex-prefeitos, ao satirizar as condutas dos governantes. Apesar das ironias com os nomes, o narrador chega a afirmar: “Agora quero falar de meus administradores. Não vou destacar pontos negativos de nenhuma administração, apenas os positivos”. Dessa maneira, a obra, enquanto produção didática, perdeu a oportunidade de levar pequenos leitores a um raciocínio mais analítico.
No acordo ficcional do livro em debate, outro problema perpassa o elogio ao favor. Mais ao final da história, a narrativa pausa e agradece bolsas de estudo concedidas à filha da autora. A prática do favor, como se sabe, é muito comum na cultura brasileira, marcada por homens cordiais, sujeitos que levam tudo ao coração. Entretanto, no livro, o agradecimento a tal prática não vira motivação estética; pelo contrário, há o elogio em si. A narrativa para de acontecer de maneira que possa haver nomeações dos agradecidos. Se as listas de obras de ex-prefeitos se justifica, em alguma medida, enquanto documentação com finalidade didática, a pausa para agradecimentos pessoais é ainda mais frágil, misturando, sem refinamento estético, instâncias como o narrador e o autor.
Não só aos homens vão os agradecimentos. Deus também é sempre alvo. Cotejando comparações entre a formal social e a forma literária, poderia dizer: há prática do favor na sociedade, há o favor no livro; existe religiosidade cristã em Fervedouro, o Deus cristão é sempre agradecido na história de Fê. Como é dito na obra, “Esta é uma qualidade que eu tenho e nunca quero perder. Graças a Deus minhas sementes herdaram isto de mim, basta acreditar”. Nesse particular, convém lembrar que a própria autora, Aparecida Gomes Oliveira, é apresentada, na quarta capa do volume, como missionária da Igreja Metodista, formada em Teologia pela Universidade Metodista de São Bernardo do Campo.
Havendo elogio aos políticos, favores e agradecimentos religiosos, a obra caiu nas graças do público local – espécie de perdão popular aos equívocos formais. Foram impressos 2000 exemplares, sem dúvida um best-seller para os padrões regionais, ainda considerando que a população total de Fervedouro é de pouco mais de dez mil habitantes. Apesar disso, em Carangola, a obra não fez tanto sucesso, é praticamente desconhecido o que, se assim podemos dizer, o principal livro da literatura fervedourense. Penso que os carangolenses desconhecem a produção da cidade vizinha muito em função da maneira como a relação entre as duas cidades é ficcionalizada pela escritora.
Carola, prosopopéia da Princesinha da Zona da Mata, é apresentada de uma maneira no mínimo polêmica. Ela é ciumenta, furiosa, capaz de colocar espiãs para retirar de Fê o desejo da emancipação política. Ele, por sua vez, é o seu filho preferido, aquele que sempre ajudava sua mãe com recursos, o pobre jovem que deseja crescer na vida, mas que encontra, em sua mãe, a madrasta dos contos de fados. Se o leitor não quiser saber o desfecho da história, não continue esta frase: é claro que, ao final, todos terminarão bem, Fê e Carola se reaproximarão como bem manda certa literatura infantil.
O final feliz é, possivelmente, registro de uma influência literária sofrida pela autora: Pollyanna, de Colleen Reece. Acrescido a isso, Como a própria Aparecida Gomes Oliveira afirma em sua biografia, presente nas últimas páginas da obra, “Este livro surgiu da necessidade de se ter algum documento sobre Fervedouro para se trabalhar com crianças. Pois tudo o que tínhamos até então eram documentários voltados para o público adulto”. Nesse ponto, sabendo que a obra possui finalidade didática, valeria, mais ainda, a necessidade de uma revisão textual e de um refinamento no trato da linguagem. É necessário reavaliar, por exemplo, a colocação de vírgulas, a repetição de trecho, a ortografia, a utilização de maiúscula/minúscula, a falta do espaçamento de alguns parágrafos, bem como a construção dos diálogos um tanto distantes do encantamento infantil.
Embora haja problemas, Oi, sou Fê! Prazer em conhecer! é uma obra que ficará, no mínimo, na história de Fervedouro. É a sua certidão (literária) de nascimento. Como o livro chega a dizer: “Descobri que a única forma de me tornar eterno é me eternizar nas memórias de um povo, e só um livro pode fazer isso”. Discordo que apenas um livro o possa fazer: a crítica também possui essa função. Lembrar um texto, seu autor e sua cidade, problematizando, é uma forma de não deixar esquecidos tais elementos. Maneira também de os apresentar a novos leitores.