Em 1 de fevereiro de 2012 por Jana Coimbra
A falta de consciência da preservação do Patrimônio Histórico e Cultural
descaracteriza as construções do início do século em Carangola,
fazendo com que o município perca sua identidade.
Jana Coimbra
Ao contrário de Ouro Preto (MG), que é considerada exemplo de preservação do Patrimônio Histórico Nacional e Patrimônio Cultural da Humanidade pela Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (UNESCO), Carangola não tem essa preocupação: o passar do tempo apaga sua história. O povo é pacato, os interesses políticos prevalecem, o Ministério Público não toma as providências necessárias, e assim, sua identidade cultural é cada vez mais esquecida. Como Carangola, milhões de municípios brasileiros convivem tranquilamente com a depredação do seu patrimônio cultural e com a falta de preservação do acervo, mais marcante na população das cidades do interior, principalmente por questões políticas partidárias, ainda marcadas pelo coronelismo.
Casos curiosos, e porque não dizer inacreditáveis, fazem parte da história de Carangola. Como exemplo, o Conselho Deliberativo do Patrimônio Histórico e Cultural de Carangola criado em julho de 1998. A verba destinada ao Conselho nunca foi repassada, tornando-se impossível agir deliberativamente já que há dependência financeira da Prefeitura. Dos 853 municípios mineiros, Carangola foi a primeira cidade a abrir a conta do Fundo do Patrimônio (FUNPAC), em 2000, a qual o dinheiro deveria ser repassado. Há 11 anos, secretários municipais de cultura e conselheiros, esperam o repasse da verba que vem do Governo do Estado, com os montantes de cada secretaria já definidos e que até hoje não é repassada. De vez em quando, o poder municipal faz uma reforma de fachada em um bem que está mais necessitado, para conseguir manter a pontuação de Carangola junto ao Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico (IEPHA) e assim aumentar os recursos recebidos através do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços relacionados à cultura (ICMS Cultural). Minas Gerais é o único estado que repassa o ICMS para as cidades que preservam seus patrimônios históricos. Atualmente, 623 municípios participam deste incentivo dos tombamentos de bens culturais, com a contribuição do Estado. Quanto mais bens tombados e preservados, maior o repasse do ICMS.
Em Carangola, 21 bens são tombados. Dentre eles dois sítios arqueológicos, registrados no IPHAN. O Sítio “Córrego do Maranhão” (no distrito de Alvorada, datado do ano 400 d.C.) onde segundo os arqueólogos, viveram índios Tupiguarani durante aproximadamente 1000 anos. E o Sítio “Gruta do Puri” (no distrito Ponte Alta de Minas), um cemitério indígena, com data de 1390, situado a 90 metros de altura.
Um destes bens, era a sede da Prefeitura Municipal, palco de uma tragédia na história de Carangola, em 2007. A sede era uma construção antiga e histórica, onde funcionou o primeiro grupo escolar da cidade e que caiu literalmente no chão. Desabou o telhado e as paredes, por volta das 24h, fora do expediente de trabalho. O prefeito foi avisado 15 dias antes da tragédia acontecer, por uma equipe de técnicos de Belo Horizonte, que o prédio deveria ser desocupado urgentemente, porque corria o sério risco de desabar. Porém nenhuma providência foi tomada. O problema foi levado ao conhecimento do Ministério Público, que acabou entrando com uma ação contra o Prefeito, acusando-o pelo ocorrido. Até hoje a ação não deu em nada e ninguém questiona. Para a jornalista, Jandira Machado, o fato comprova que em Carangola, manda quem pode e obedece quem juízo. “O coronelismo e a politicagem são entranhados até hoje na população carangolense. Tombar um patrimônio histórico pode comprometer o voto do proprietário do imóvel e de toda a sua família. Além dos próprios cidadãos não terem a consciência de preservar sua história”, completa.
Segundo o ex-conselheiro do Patrimônio, Márcio Soares, quando aconteceu o desabamento, a prefeitura já estava no processo de desocupação de algumas áreas para serem restauradas. “A burocracia e a morosidade das pessoas envolvidas foram tão grandes, que deu no que deu. Existem laudos que comprovam todos os riscos que ameaçavam o bem”. Após o ocorrido foram feitas muitas reuniões para decidir o que seria reconstruído. Concluindo-se que não cabia uma restauração nos moldes originais, já que a fachada havia sido totalmente destruída. Foi aprovado por todos os conselheiros, exceto pelo historiador, Rogério Carelli, que depois do ocorrido pediu demissão do Conselho, a construção de um novo projeto, que se tratava de uma releitura da antiga sede, porém toda espelhada em vidro. Há controvérsias sobre a nova arquitetura do Poder Municipal, para Márcio Soares, a obra trouxe a Carangola uma construção arrojada, dentro da contemporaneidade aceitável em qualquer parte do Brasil, como em Curitiba, na Praça da Liberdade em BH e em muitos outros lugares. Já para o arquiteto, Pedro Henrique Paranhos, em pouco tempo a obra vai estar velha e seu estilo em desuso, além de não ter gostado da fachada.
A fiscalização dos bens tombados pode ser feita por qualquer cidadão. Basta levar a denúncia ao Conselho Patrimonial para que seja analisado e, caso haja interesse do Conselho, seja montado um processo para que as devidas providências sejam tomadas. Na prática, é interessante que a Prefeitura os mantenha e os preserve porque assim aumentam a pontuação do ICMS Cultural, que é anualmente vistoriado pelo IEPHA, a fim de checar o que está sendo feito para manter, aumentar ou diminuir a pontuação, caso o bem tenha sofrido algum dano.
A Escola Servita Regina Pacis, há 90 anos instalada em Carangola, é um dos cartões postais da cidade, tombada pelo patrimônio. Na teoria, as reformas para a preservação deviam ser financiadas pelo poder público. Quando foi preciso reformar a capela da escola, em 2008, a restauração foi paga com o dinheiro da própria instituição. Na maioria das vezes, o custo da conservação é semelhante ao de uma obra comum. Quando o imóvel se encontra muito deteriorado, por falta de manutenção, torna-se necessário executar intervenções de maior porte, que encarecem a obra. Outra situação é a dos prédios que contêm materiais, elementos decorativos, ou técnicas construtivas excepcionais, como a Capela da Escola Servita. Nesses casos é necessário utilizar mão-de-obra especializada, elevando o custo dos serviços.
A Igreja Matriz de Santa Luzia quando estava em processo de tombamento teve seu piso centenário arrancado e trocado por granito. As antigas pedras que compunham o piso tinham sido fabricadas em Carangola mesmo, em uma fábrica hoje extinta, Casa Graça. Prova da falta de consciência e cultura dos carangolenses é que antes do piso ser trocado foi feito um plebiscito em todas as igrejas católicas e a troca foi aprovada com 90% dos votos. Para a estudante de comunicação, Mariana Verdini, falta em Carangola um trabalho que mostre ao povo a verdadeira importância de se ter coisas tão antigas compondo a história do município, que consequentemente é a história de toda população. “Lembro que quando iam arrancar o piso da igreja, nós fizemos uma manifestação na escola, publicamos textos em um jornal local. Foi realmente um absurdo o que aconteceu”, completa.
Por que preservar?
Para a carangolense, Ludimila Beviláqua, 41, a preservação do patrimônio histórico é a preservação da identidade. “Nossa história individual e coletiva está profundamente ligada ao que nossos antepassados construíram, seja na solidez arquitetônica ou na idealização de uma ideia. A história é dinâmica e é esse dinamismo que muitas vezes se confunde com a velocidade de levantar projetos arrojados em cima de destroços do que antes guardava a origem e modo de vida daquele grupo social. Não sou avessa ao progresso, desde que ele não se construa as custas da destruição do patrimônio. Não é assim que se promove a cultura de um povo. Nas sociedades milenares podemos perceber, antes de tudo, o respeito e o cuidado com o patrimônio. É uma questão cultural, de educação de base, de berço. Aprende-se a preservar porque aprende-se a valorizar, a entender como algo valioso e fundamental. Fazemos com nosso patrimônio histórico o que fazemos com nossos idosos: destratamos, descuidamos, descartamos. Por isso fomos consagrados como um povo sem memória. E assim o seremos, até que entendamos fundamentalmente a necessidade de contar e recontar nossa história para os herdeiros desse patrimônio, para que assim, a dinâmica se fortaleça sobre a base sólida de uma sociedade que veradeiramente preserva sua história,” afirma.
Para a professora de história da arte e poeta, Hélen Queiroz, é lamentável não ter uma política de preservação patrimonial decente em Carangola. “A arquitetura antiga da cidade vem sendo literalmente demolida e o pouco que restou tem sido substituída pela força da grana que ergue e destrói coisas belas. Prédios de muitos andares e vidros espelhados vem ganhando o espaço das construções charmosas do início do século passado. Com isso, perdemos memória, aconchego e lirismo, algo irrecuperável”, comenta.
Educação e Patrimônio
O termo “Educação Patrimonial” chegou ao Brasil na década de 1980, através de uma professora que direcionou ações a outros colegas, com objetivo de torná-los agentes multiplicadores da cultura. Em 1999, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) publicou o Guia Básico de Educação Patrimonial contendo práticas e as primeiras experiências sistematizadas.
Segundo o site do IPHAN, este trabalho busca levar as crianças e adultos a um processo ativo de conhecimento e valorização de sua herança cultural, capacitando-os para usufruírem destes bens. A Educação Patrimonial é um instrumento de alfabetização cultural que possibilita ao indivíduo fazer a leitura do mundo que o rodeia, levando-o à compreensão do universo sociocultural e da trajetória histórica-temporal em que está inserido. Este processo leva à valorização da cultura brasileira, fortalecendo os sentimentos de identidade e cidadania.
De acordo com o diretor do Museu Municipal e membro do Conselho Patrimonial de Carangola, Randolpho Radsack, o trabalho de educação patrimonial do município ainda não saiu do papel. “Existem vários projetos que não tiveram continuidade nas escolas. Na Semana Nacional dos Museus, tivemos um grande número de crianças envolvidas nas atividades, como palestras e teatros voltados para a preservação”, comenta.
Estes projetos têm o objetivo de levar os alunos para visitarem os patrimônios. Os municípios mineiros que participam, também recebem o ICMS Cultural e todo ano têm que apresentar ao IEPHA um projeto de educação patrimonial para ser trabalhado nas escolas nesse período e no final realizam uma prestação de contas do projeto.
História e Atualidade
A Preservação do Patrimônio Histórico Cultural teve início no século XIX, após a Revolução Francesa e Industrial, com objetivo de restaurar os monumentos e edifícios históricos destruídos na Guerra. No Brasil, o primeiro órgão voltado para a preservação do patrimônio foi a Inspetoria de Monumentos Nacionais (IPM), criado em 1933, para impedir que objetos antigos referentes à história nacional, fossem retirados do país e que as edificações monumentais fossem destruídas por conta das reformas urbanas.
No decorrer da história, em 1937 criou-se o IPHAN, com o intuito de preservar, fiscalizar, restaurar e divulgar os bens culturais do Brasil. Em 1971, o governo de Minas Gerais, criou o IEPHA, para preservar a identidade mineira. O Estado possui o segundo maior conjunto de bens tombados pelo Iphan, dentre os quais prevalecem os de cunho religiosos, como igrejas e imagens.
Porém, o abandono se tornou característica de grande parte dos bens tombados em Minas. De acordo com o Ministério Público Estadual, o número de investigações sobre mau estado de conservação do patrimônio aumentou 900% nos últimos cinco anos. O salto foi de 100 ocorrências em 2006 para cerca de 1 mil sob apuração.
Segundo estudos da Universidade Federal de Viçosa, 100% das edificações brasileiras de relevância histórica, estão ameaçadas pelos cupins, carunchos, traças, brocas e outros insetos. Segundo o professor e engenheiro florestal Norivaldo dos Anjos, se não forem tomadas medidas urgentes e eficazes, o país perderá, no máximo em 50 anos, os acervos dos séculos XVII, XVIII e XIX, que guardam a memória e atraem turismo.